DIREITO DE FAMÍLIA
Apelação Cível - Direito de Família - Ação de Destituição de Pátrio Poder c.c. Adoção - Abandono material e afetivo de menor - Art. 1.638 do CC - Perda do pátrio poder - Possibilidade - Adoção deferida - Restando demonstrado o abandono de menor por sua genitora, que, ao entregá-lo aos cuidados de terceiros, deixa de lhe prestar os necessários cuidados, carinho e atenção indispensáveis ao seu desenvolvimento saudável, em total descumprimento de suas obrigações inerentes à maternidade, a perda de seu poder familiar é medida que se impõe. Preenchidos os requisitos do art. 1.618 e ss. do CC/2002 e do art. 40 e ss. do ECA, o deferimento da adoção de menor àqueles que sempre lhe prestaram, e continuam prestando, toda assistência material e afetiva é medida que se impõe (TJMG - 3ª Câm. Cível; ACi nº 1.0097.07.001019-0/001-Cachoeira de Minas-MG; Rel. Des. Elias Camilo; j. 28/1/2010; v.u.). |
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ACÓRDÃO Acorda, em Turma, a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, sob a Presidência do Desembargador Kildare Carvalho, incorporando neste o Relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, em rejeitar a preliminar e negar provimento. Belo Horizonte, 28 de janeiro de 2010
Elias Camilo RELATÓRIO O Sr. Desembargador Elias Camilo: trata-se de Recurso de Apelação contra a sentença de fls. 160/166, que julgou procedente o pedido inicial da Ação de Destituição do Poder Familiar c.c. Pedido de Adoção proposta pelos ora apelados, para destituir o poder familiar de ..., ora apelante, sobre a menor ..., e deferir aos apelados sua adoção, “fazendo-se constar os nomes dos avós paternos e maternos, conforme documento de fls. 06, para inscrição da sentença, observando-se em tudo o disposto no art. 47 do ECA” (sic, fls. 166). Em suas razões recursais de fls. 171/174, sustenta a apelante, em apertada síntese, merecer reforma a sentença vergastada, vez que, além de depender a adoção do consentimento dos pais da menor, o que não se verifica na espécie, “atualmente, a requerida já tem condições de criar a menina, possui residência própria, na qual existe até um quarto mobiliado esperando pela filha, que será adotada por seu companheiro” (sic, fls. 172). Assevera que, conforme o disposto no art. 19 do ECA, somente em casos excepcionais será a criança ou o adolescente retirado de sua família natural, não se verificando, in casu, tal hipótese, haja vista que “não existem elementos de prova nos Autos com a gravidade necessária para justificar a perda do pátrio poder”, especialmente se considerado o fato de não ser a carência de recursos financeiros suficiente para tanto, conforme o art. 23 do mesmo diploma legal, devendo ser, na espécie, decretada tão somente “a suspensão do pátrio poder, até que a recorrente possa assegurar, com tranquilidade, as condições necessárias para preservar os interesses da menor” (sic, fls. 173). Arremata pugnando pelo provimento do Recurso, com a reforma parcial da sentença vergastada, “com a decretação da suspensão do pátrio poder, em lugar da perda, enquanto perdurarem os motivos que deram origem a esta Ação” (sic, fls. 174). Recebido o Recurso, ofertaram os apelados as contrarrazões de fls. 178/185, arguindo, inicialmente, preliminar de intempestividade. No mérito, pugnam pelo seu improvimento, com a manutenção da decisão vergastada. Parecer da D. Procuradoria-Geral de Justiça (fls. 195/198), opinando pelo desprovimento do Recurso. VOTO Da preliminar de intempestividade do Recurso Em suas contrarrazões, argúem os apelados preliminar de não conhecimento do Recurso, por intempestivo. Com a devida vênia, razão não lhes assiste. Ab initio, cumpre registrar que, estando a apelante representada por Defensor Dativo, in casu, nos termos do art. 5º, § 5º, da Lei nº 1.060/1960, deve ser observada a prerrogativa de intimação pessoal deste para todos os atos do Processo, bem como do prazo recursal em dobro para recorrer. Vejamos: “Art. 5º - (...) § 5º - Nos Estados onde a Assistência Judiciária seja organizada e por eles mantida, o Defensor Público, ou quem exerça cargo equivalente, será intimado pessoalmente de todos os atos do processo, em ambas as instâncias, contando-se-lhes em dobro todos os prazos.” Dessa forma, compulsando detidamente os Autos, verifico que, em que pese ter sido a sentença vergastada publicada no DJE do dia 14/5/2009 (quinta-feira), conforme informações obtidas no site do TJMG, somente em 20/5/2009 (quarta-feira), quando da carga dos Autos pelo Procurador da apelante, considera-se efetivada a sua intimação pessoal (§ 5º do art. 5º da Lei nº 1.060/1960), iniciando-se, portanto, o prazo recursal, via de consequência, em 21/5/2009 (quinta-feira). Assim, no caso dos Autos, tem-se que o prazo recursal previsto no art. 508 do CPC para a interposição da apelação, e considerada a prerrogativa da contagem do prazo recursal em dobro, findou-se em 19/5/2009, sexta-feira. Dessa forma, sendo o presente Recurso protocolado em 19/5/2009 (fls. 71), sexta-feira, não há que se falar em intempestividade na espécie. Com tais considerações, rejeito a preliminar. Assim, presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do Recurso, porque próprio, tempestivamente apresentado, regularmente processado, isento do preparo em razão da gratuidade de Justiça deferida. Pugna a apelante, através do presente Recurso, pela reforma parcial da decisão vergastada, para decretar, tão somente, a suspensão de seu pátrio poder sobre a menor ... . Inicialmente, cumpre ressaltar que a questão atinente ao pedido de adoção de menor e destituição de pátrio poder deve ser analisada sob o manto do Princípio da Garantia Prioritária do Menor, erigido à ótica dos direitos fundamentais previstos na CF, tais como o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à dignidade da pessoa humana e à convivência familiar, competindo aos pais e à sociedade torná-los efetivos, conforme estabelecido nos arts. 4º e 6º do ECA. Vejamos: “Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.” “Art. 6º - Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento.” Assim, conforme o disposto no art. 1.634 do CC, o poder familiar, também conhecido como pátrio poder, antes de ser uma prerrogativa, constitui verdadeiro dever dos pais, a quem incumbe dirigir a criação e educação dos filhos (inciso I), mantê-los em sua companhia e guarda (inciso II), representá-los na vida civil (incisos III, IV e V), reclamá-los a quem ilegalmente os detenha (inciso VI) e exigir que prestem obediência, respeito e serviços próprios da idade (inciso VII). No mesmo sentido, o art. 22 do ECA: “Art. 22 - Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.” Sobre o assunto, MARIA BERENICE DIAS e RODRIGO DA CUNHA PEREIRA, em sua obra Direito de Família e o novo Código Civil (3ª ed., Belo Horizonte, Del Rey, p. 179-180), ensinam: |
“Sendo menos poder e mais dever, converteu-se em múnus, concebido como encargo legalmente atribuído a alguém, em virtude de certas circunstâncias, a que se não pode fugir. O poder familiar dos pais é ônus que a sociedade organizada a eles atribui, em virtude da circunstância da parentalidade, no interesse dos filhos. O exercício do múnus não é livre, mas necessário no interesse de outrem. É como diz PIETRO PERLINGIERE, ‘um verdadeiro ofício, uma situação de direito-dever; como fundamento da atribuição dos poderes existe o dever de exercê-los’.” Assim, conforme sabido, a perda ou destituição do pátrio poder, como sanção mais grave imposta aos pais, só deve ocorrer naqueles casos em que comprovados a falta, omissão ou abuso em relação aos filhos, conforme prescreve o art. 1.638 do CC/2002, que dispõe: “Art. 1.638 - Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I - Castigar imoderadamente o filho; II - Deixar o filho em abandono; III - Praticar atos contrários à moral e ao bom costume; IV - Incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.” Por sua vez, o art. 24 do ECA: “Art. 24 - A perda e a suspensão do pátrio poder serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22.” Dessa forma, cinge-se a controvérsia recursal à verificação da ocorrência do abandono da menor ... por sua genitora, ora apelante, utilizado como fundamento para a perda de seu pátrio poder sobre ela. O abandono do filho, causa para a perda do poder familiar, configura-se por uma atitude omissiva de um ou de ambos os pais que deixarem de desempenhar seus deveres para com os filhos. Sobre o assunto, DIMAS MESSIAS DE CARVALHO leciona: “deixar o filho em abandono inclui não apenas deixá-lo sem lar ou assistência material, mas também privá-lo de condições imprescindíveis à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, tanto que o CP tipifica como crime o abandono de incapaz (art. 133), o abandono material (art. 244) e o abandono intelectual (art. 246). (...) A Desembargadora mineira Maria Elza decidiu, em excelente julgado, quanto à possibilidade da destituição do poder familiar em razão do abandono afetivo. Ressaltou que a destituição do poder familiar, por envolver o poder de declarar desfeitos os vínculos de filiação e parentesco entre pais e filhos, é sempre traumática e perturbadora para o Juiz, tanto que, pela seriedade e relevância do ato, a lei trata como algo de excepcional, enfatizando que a falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda e suspensão do poder familiar. Contudo, o mesmo não ocorre acerca da carência de amor, afeto, atenção, cuidado, responsabilidade e compromisso dos pais, pois tais sentimentos são imprescindíveis para o pleno e integral desenvolvimento da criança, que restará imensamente prejudicada no seu processo de desenvolvimento e como sujeito de direitos civis, humanos e sociais, tendo seriamente ameaçados seus valores maiores e fazendo pouco caso dos Princípios constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana e da Proteção Integral à Criança. O abandono afetivo, evidenciado no desinteresse de criar, educar, orientar e formar os filhos, transferindo tal responsabilidade para terceiros, que culmina na ausência de cuidados e falta de comprometimento, impõe a perda do poder familiar, possibilitando à criança ser acolhida por uma nova família que lhe conceda uma relação de parentesco afetiva” (In Direito de Família. 2ª ed., Belo Horizonte, Del Rey, 2009, p. 384-385). Dessa forma, in casu, de uma detida análise do conjunto probatório dos Autos, verifica-se ter restado amplamente demonstrado que a apelante, ao deixar a filha, ainda recém-nascida, sob os cuidados de terceiros, inicialmente com uma senhora, e após com os apelados, conforme documento de fls. 11, deixando inclusive de visitá-la por vários períodos, conforme por ela mesma confirmado quando da realização do estudo social de fls. 118, mostrou-se indiferente aos seus eventuais problemas e necessidades, sendo, portanto, omissa e negligente com relação aos cuidados necessários e inerentes à sua criação. O Parecer Psicológico de fls. 135/137 esclarece: “As informações obtidas sobre a Sra. ... foram através do Laudo de Assistente Social Judiciária, que consta nestes Autos, e informações sobre história de vida de ... através dos requerentes. Tais informações nos revelam que ..., quando estava com sua mãe biológica, ficou desnutrida, sem os devidos cuidados higiênicos, a ponto de ter cascões em sua pele. Para ..., a mãe biológica é uma figura totalmente ausente e desconhecida, isto porque a Sra. ... delegou a sua função materna à Sra. ... e rompeu contato com ..., não estabelecendo nenhum vínculo afetivo com a filha. Embora não tenha avaliado a Sra. ..., caracteriza um quadro de abandono, e o fato de a mesma não ter procurado ... durante 3 anos, entende-se que não há espaço interno nessa mãe biológica para maternagem em relação a esta criança.” (sic, fls. 136) Ademais, a própria distância física existente entre a apelante e a menor, desde seus primeiros dias de vida, já demonstra o abandono perpetrado, haja vista inviabilizar o oferecimento, pela mãe, dos cuidados necessários ao crescimento saudável da criança, sob os aspectos físicos, afetivos, psicológicos e sociais, dificultando, ainda, a possibilidade de vir a mãe a exercer qualquer direção na sua criação. Não se trata, na espécie, de simples abandono material, mas especialmente afetivo, haja vista ter a apelante abandonado a menor aos cuidados dos apelados ainda recém-nascida, visitando-a esporadicamente no início, e, posteriormente, permanecendo afastada por longos períodos, deixando de lhe prestar, assim, os necessários cuidados, carinho e atenção indispensáveis ao seu desenvolvimento saudável, em total descumprimento de suas obrigações inerentes à maternidade, fato este que, por si só, é suficiente para impor a perda de seu poder familiar. Da mesma forma, preenchidos os requisitos do art. 1.618 e ss. do CC/2002 e do art. 40 e ss. do ECA, o deferimento da adoção aos apelados, que sempre lhe prestaram, e continuam prestando, toda assistência material e afetiva, conforme comprovado, especialmente pelos Estudos Sociais de fls. 64-65 e 118-119, e Parecer psicológico de fls. 135/137, e depoimentos testemunhais colhidos (fls. 72-73 e 74), é medida que se impõe. Ademais, como bem observado pelo D. Procurador de Justiça, Dr. Rômulo de Carvalho Ferraz, “No caso em tela, restou demonstrado que a menor ... está sendo bem cuidada, encontra-se bem adaptada e totalmente inserida no ambiente familiar dos apelados, como se fossem seus pais biológicos, assim como estes a tratam como se filha legítima fosse. Ressalte-se que a criança já conta com 5 anos de idade (Certidão de Nascimento a fls. 09) e desde os 6 meses de vida encontra-se sob os cuidados dos apelados. Frise-se, o estudo social realizado foi conclusivo em afirmar que ‘devido ao tempo de convivência e à qualidade do vínculo afetivo estabelecido, qualquer alteração no atual momento, neste vínculo, poderá acarretar danos irreparáveis à personalidade de ...’. Assim, em atendimento ao Princípio da Prioridade Absoluta e considerando o fato de que a criança já se encontra integrada ao novo lar, nele deve permanecer. Em situações desse jaez, deve-se assegurar o bem-estar do menor, interesse maior e superior ao dos apelantes” (sic, fls. 196-197). Com tais considerações, rejeito a preliminar de intempestividade, e, no mérito, nego provimento ao Recurso, mantendo a sentença de 1º Grau por seus próprios e jurídicos fundamentos. Custas recursais, pela apelante, suspensa a exigibilidade em razão da gratuidade de Justiça deferida. Votaram de acordo com o Relator os Desembargadores Kildare Carvalho e Silas Vieira. Súmula: Rejeitaram a preliminar e negaram provimento. |